O Movimento Camponês Popular (MCP) dos estados de Sergipe e Bahia denuncia a contaminação genética das sementes crioulas de milho por transgênicos, nos territórios Sul e Sertão Ocidental em Sergipe e no território Semiárido Nordeste II da Bahia. O MCP atua no estado de Sergipe, desde o final do ano de 2014 e no município de Banzaê na Bahia, desde o final do ano de 2022, tendo como principais bandeiras de luta, a produção de alimentos saudáveis e, o uso e a conservação das sementes crioulas.
Durante esse período foram realizadas diversas atividades de formação, acompanhamento técnico, resgate, multiplicação, beneficiamento, monitoramento participativo e acesso a políticas públicas, com foco na agrobiodiversidade e na construção de sistemas sustentáveis de produção de alimentos. Como resultado deste processo, alcançou-se significativa produção de sementes pelos camponeses organizados no Movimento. A produção foi e é realizada em duas perspectivas, sendo a primeira para o autoconsumo das próprias famílias ou dentro dos próprios sistemas produtivos, enquanto a segunda para a comercialização direta e/ou comercialização por meio das associações ligadas ao MCP. No total, foram comercializadas, pelo MCP, mais de 110 toneladas de sementes crioulas (das quais destacamos milho e feijão, mas também amendoim e adubação verde). Além de sementes, foram comercializadas mais de 115 toneladas de flocão de milho crioulo e, aproximadamente, 25 toneladas de feijão crioulo, que serviram para alimentar de forma saudável milhares de famílias, sobretudo no período da pandemia.
Construímos parceria de cooperação com diversas instituições, as quais puderam ajudar nessa trajetória, sendo algumas delas o Instituto Federal de Sergipe (IFS), a Universidade Federal de Sergipe (UFS), a Embrapa Tabuleiros Costeiros, a Empresa Sergipana de Desenvolvimento Agropecuário (EMDAGRO), a Secretaria de Estado da Agricultura, Desenvolvimento Agrário e Pesca de Sergipe (SEAGRI), além de articulações e organizações da sociedade civil como a Rede Sergipana de Agroecologia (RESEA), a Associação Regional de Convivência Apropriada ao Semiárido (ARCAS) e a Cáritas Diocesana.
Porém, este trabalho de produção de alimentos associado à conservação da Agrobiodiversidade vem sendo ameaçado pelo avanço dos transgênicos e uniformização de variedades cultivadas em nossos territórios, o que tem provocado erosão e contaminação genéticas das sementes crioulas, colocando em risco o nosso patrimônio genético, responsável por toda diversidade de variedades agrícolas, fundamentais para enfrentar as mudanças climáticas e garantir a produção de alimentos diversificada.
Desde 2018, a cooperação entre o MCP e o Instituto Federal de Sergipe-IFS realiza regularmente testes de contaminação por transgenia. Essa rotina permitiu verificar que as contaminações têm alcançado índices cada vez maiores. Na safra de 2023, chegamos ao percentual alarmante de 68% das 40 amostras testadas contaminadas por transgênicos, atingindo amostras de 9 variedades de milho, o que nos provoca muita preocupação com vistas ao futuro da produção de variedades crioulas. Estima-se que a quantidade total de material com contaminação genética somente das famílias organizadas pelo MCP nestas regiões esteja em torno de 15 toneladas, causando um prejuízo econômico estimado na ordem de 150 mil Reais aos guardiões e guardiãs que produziram essas sementes.
As amostras analisadas foram coletadas por técnicos do MCP, no âmbito da cooperação com o IFS, com uso de metodologia da coletas diretas em lavouras, estoques individuais e em bancos de sementes comunitários localizados nos municípios da região Sul e Sertão Ocidental de Sergipe e no município de Banzaê (BA), envolvendo comunidades de agricultores familiares, quilombolas e indígenas, e em seguida encaminhadas ao laboratório do Instituto Federal de Sergipe em embalagens plásticas virgens individualizadas.
Isso ocorreu mesmo com as famílias camponesas seguindo orientações técnicas realizadas pelo MCP, com estratégias de prevenção à contaminação, como a utilização de quebra-ventos, plantação em períodos diferentes, realização de limpeza de maquinários de plantio, colheita e processamento, cópias de segurança, etc.. Entretanto, essas estratégias não têm sido suficientes para conter os processos de contaminação genética que avança a cada dia sobre os territórios. Por isso, afirmamos que as contaminações impõem ao campesinato prejuízos produtivos, econômicos, culturais, ambientais e alimentares.
Neste sentido, o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO (sua sigla em inglês) ratificado pelo Brasil, em 2006, estabelece como objetivo a conservação e o uso sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação e agricultura, e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados de sua utilização, em favor da agricultura sustentável e da segurança alimentar. O artigo 9º do Tratado é dedicado aos “direitos dos agricultores” e reconhece a “enorme contribuição que as comunidades locais e indígenas e os agricultores de todas as regiões do mundo, em particular os dos centros de origem e de diversidade das plantas cultivadas, têm realizado e continuarão a realizar para a conservação e o desenvolvimento dos recursos fitogenéticos que constituem a base da produção alimentar e agrícola em todo o mundo”.
Apesar do Brasil ter ratificado o Tratado no âmbito da legislação federal, as normas sobre o tema das sementes (lei nº 11.105/05 da biossegurança, lei 9.456/97 e a lei 10.711/03 de sementes e mudas) estão voltadas para defender as sementes industriais, desconsiderando a importância das sementes crioulas e dos sistemas agrícolas locais para a conservação do patrimônio genético e da agrobiodiversidade. Uma das consequências dessa falta de proteção do patrimônio genético crioulo é o avanço das contaminações genéticas sobre essas sementes, o que representa uma grave violação ao dever do Estado de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país, conforme estabelece o art. 225, parágrafo 1º, inciso II da Constituição Federal que versa sobre a proteção ao meio ambiente.
Outro exemplo é o caso de Sergipe que, em 2016, aprovou a Lei 8.167, que institui o conceito de sementes crioulas e o incentivo à conservação da Agrobiodiversidade no Estado de Sergipe, e define:
“Considera-se Área de Proteção da Agrobiodiversidade as áreas/terrenos/regiões/territórios onde há produção de sementes locais, tradicionais ou crioulas, ficando proibido o cultivo de qualquer material genético (sementes transgênicas e híbridas) que venha a ameaçar as características fenotípicas e genotípicas das sementes locais, tradicionais ou crioulas”.
Não obstante a aprovação da lei, ainda não existe regulamentação para sua implementação e, assim, garantir ações de monitoramento, fiscalização e/ou proteção da agrobiodiversidade nestes territórios.
Diante do exposto, afirmamos que é necessário e urgente que o poder público estabeleça normas eficazes e ações efetivas de proteção para assegurar o direito dos camponeses, indígenas e quilombolas de continuar conservando as sementes crioulas, peça-chave para assegurar a manutenção do patrimônio genético e da soberania alimentar no Brasil. Por isso, instamos o Estado brasileiro a:
Adotar providências junto às instâncias competentes a nível federal, estadual e municipais, para que possamos construir caminhos de superação desta realidade e que possamos construir um sistema permanente de proteção da agrobiodiversidade, em todo o país;
Revisar os protocolos normativos de distanciamento do milho transgênico e do milho crioulo, impondo aos cultivadores de transgênico a obrigação de implementar medidas de segurança, já que o cultivo crioulo é estratégico na conservação da biodiversidade (lei 13.123/2015) e de sistemas de produção alimentar;
Incentivo ao estabelecimento de medidas protetivas como áreas de uso e conservação da agrobiodiversidade, áreas livres de transgênicos e áreas livres de agrotóxicos;
Realização de Protocolos de Consulta Livre Prévia e Informada para autodeterminação de territórios de povos e comunidades tradicionais e agricultura familiar camponesa;
Assim como outras medidas cabíveis para proteção da agrobiodiversidade, tendo em vista as diversas realidades territoriais existentes em nosso país.
21 de outubro de 2024.
Direção Estadual do Movimento Camponês Popular de Sergipe e Bahia.
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