Nós, do Movimento Camponês Popular (MCP) queremos falar da fartura, porque ela é nossa por direito. Mas também falaremos da fome porque é essa desavergonhada visita que chega em nossas casas, monta acampamento e coloca nossa gente no mapa. No mapa da fome!
Josué de Castro sentenciou que “metade da humanidade não come e a outra metade não dorme, com medo da que não come”. Hoje, são mais de 33 milhões de pessoas vivendo sem tem o que comer. Os números são tantos e absolutos e fica ainda maior quando vemos o rosto dando a face à fome causada por um projeto de morte. Esses projetistas das mazelas dormem e dormem bem.
A catástrofe sanitária veio de mãos dadas com o desemprego, a falta de oportunidades, a precariedade da vida e o descaso governamental. Na cidade e também na roça padecemos dos mesmos males, jogamos com nossa esperança, na tentativa de que ela seja a última a não nos deixar, porque seria desalento demais não poder mais es-pe-ran-çar. E de esperança é o que precisamos, além de comida, para mudar essa triste realidade, onde os lares chefiados por mulheres, negros e pessoas com baixa escolaridade estão entre as brasileiras e os brasileiros que sofrem com algum tipo de insegurança alimentar e nutricional – mais da metade da nossa população.
Nosso povo tem fome. A fome tem nome! São muitas fomes as que nos acomete feito doenças. É aquela fome da panela e do prato vazio, mas é também a estrutural, fruto das desigualdades sociais e que tem como projeto dificultar o acesso aos alimentos. Ela está nas periferias, nas comunidades do campo e da cidade. Essa fome estrutural bate ponto sem cerimônia porque não há políticas públicas que dê aos povos indígenas, quilombolas... das águas e das florestas condições para refeições fartas. Os retrocessos e a extinção de políticas são o prato principal.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece no seu artigo 25º que “Todos os seres humanos têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a saúde e bem‑estar de si mesmo e da sua família, inclusive alimentação”. Porém, a fome atinge mais de 19% dos lares chefiados por mulheres. Até mesmo no campo, ela se alastra, feito erva daninha sem controle. A cesta básica é muito mais do que básica. Ela é essencial ao preço que se eleva, na medida em que diminuímos os itens básicos. Já se tornou tão básica a não nos restar praticamente nada!
Estamos, companheiros e companheiras, desamparados em meio ao enriquecimento desenfreado de uma meia dúzia de pessoas. Se de um lado nossa gente não tem o que comer, do outro há os barões da terra que privatizam todos os meios, contaminam nossas sementes, envenenam o alimento e destroem a natureza. A comida, nesse mundo do mercado, se transforma em mercadoria, que precisa gerar lucro, ser estocada para ser vendida com melhor valor, ao invés de ser partilhada. O valor menor, nessa conta, é a vida.
É preciso mudança. É preciso resistência e enfrentamento. Nossos pratos devem estar cheios e toda família deve ter o alimento necessário para se nutrir. Este sistema predatório não se sustenta mais. Não nos sustenta e a natureza não consegue mais suportar ele. Precisamos lutar porque este direito é sagrado.
Nós do MCP, em nossos 14 anos de enfrentamentos, é que:
Reivindicamos a fartura. Mesas postas e comida para encher os olhos, a alma e a barriga, com gente sentada olhando para o fruto de seu trabalho e a abundância que a natureza oferta a quem espera a hora contada do feijão,do arroz e do pão. É direito do campo produzir comida saudável e limpa de agrotóxicos, pois é direito do povo da cidade ter acesso a essa produção agroecológica.
Reivindicamos a alegria. Os sorrisos de pequenas e grandes conquistas devem retornar em nosso meio, sem nos preocupar com os direitos essenciais negados, pois eles marcharão no amanhecer para cada povo de grande país. Trabalho, arte, lazer, saúde e educação devem ser motivos para nossos risos e nossa programação.
Reivindicamos o direito às sementes. A produção de alimentos que seja regulada pelo debate da soberania do quê produzir e como produzir. A agrobiodiversidade precisa ser considerada no processo produtivo, de modo a fortalecer cada vez mais, a partir do resgate e conservação das sementes. É direito nosso continuar a história e a memória de mais de 10 mil anos de um processo simbiótico, onde os povos campesinos conservaram, melhoraram e selecionaram as sementes conforme a natureza permitiu. É semente dos povos, a serviço da humanidade!
Reivindicamos o encontro e a união. Conclamamos a união entre sujeitos do campo e da cidade para a construção e fortalecimento de estratégias comunitárias e coletivas. Nós do campo plantamos e ao povo da cidade chegam os resultados de nosso trabalho, por isso é preciso estarmos atentos, fortes e em sintonia para impulsionar a luta por dignidade, pela construção de um Brasil popular e de um pacto pela vida, plena e em abundância.
Reivindicamos a partilha. Diante de tanta mesquinhez e das dificuldades amplas e estruturais que nos atravessam e se acumulam em tantas frentes, é preciso a garantia dos momentos em que possamos compartilhar. Com a mesa farta e diversa, fruto do trabalho de mulheres e homens, somos convite ao exercício da solidariedade. Sejamos a travessia rumo a um tempo de mais partilha do alimento, dos acontecimentos, dos abraços e dos olhares, dos sorrisos e também dos silêncios. Nossa reivindicação é a fartura de motivos para repartir, seja no alimento, na boa ou na boa prosa.
Reivindicamos a partilha da esperança farta para que transborde nossos horizontes.
Movimento Camponês Popular, Goiânia, 20 de julho de 2022.
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